sexta-feira, 14 de abril de 2017

O Beijo óbvio, rodinesco, não é pra bocas moles

Liu Sai Yam

"Conheço teus segredos, Sampa pétria. Penetro suas ruas sem vacilações, erro por onde quero e cerro meus olhos perante teus monumentos estrepitosos, todos invariavelmente armados até os dentes de espadas, trabucos, cavalos e cordas; ou petrificados em extenuantes tarefas para toda a eternidade. Havia, sim, me recordo, uma réplica em bronze de O Beijo bem diante do túnel da avenida Nove de Julho, que divide a cidade entre os Jardins e o Bexiga, entre a aristocracia meia-boca do Paris com Taubaté e a boemia meia-sola do Vai-Vai com Achiropita.
Esse beijo proibiram-no. Um beijo francês de língua e ainda com os beijantes em estado de nudez e ainda o macho com a mão direita a alisar com volúpia as coxas da fêmea, isso tudo ocasionou congestões estomacais na tradicional família paulistana nos idos anos de 1970 e não lembro bem se foi o prefeito biônico de plantão ou algum santo representante da cúria quem ordenou o arresto daquele símbolo de licenciosidade e o posterior trancafiamento daquele casal dantesco em algum depósito da prefeitura, atirados em meio a postes danificados e semáforos queimados, situação que na certa os beijantes odiaram, exibicionistas que sempre foram, desejosos de expor a nudez e o tesão aos olhares dos homens, do Sol e da Lua.
Mais tarde, sob a grita da galera que sabia que Rodin era um sacana mesmo, pero sacana dispondo de imprimatur até do Vaticano, tiveram o desejo atendido e lhes permitiram prosseguir naquele malho impudico na pracinha ao centro do Largo São Francisco, diante dos estudantes da faculdade de Direito, já que estudante é sem vergonha por natureza e o santo Francisco era outro chegado aos trajes de como Deus nos envia ao mundo, além de permanecerem sempre ao alcance de um habeas corpus (e que corpi!) expresso e liberal/libertino.
(...)
E se Sampa me contrapõe sua legião de caxias e coronéis em permanente estado de belicismo, e sobre os quais chovem chuva ácida e cagadas de pombos, sei que em algum lugar existe e subsiste um casal trepidante na indiferença aos automóveis e motocicletas e segue se beijando por entre governantes cretinos e chacinadores teleguiados.
Em cima desse beijo eterno, os pombos não ousam cagar, mas, sim, produzir, sim, novos pombinhos". :)

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